quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

epitáfio

Não era um homem rico. E, do pouco que tinha, importava-se com menos ainda: suas posses mais queridas eram uma corrente, uma aliança e um relógio de pulso.

A corrente ganhara das filhas em um de seus muitos aniversários. A aliança foi o que restou – junto com a memória – da esposa morta. O relógio ninguém sabia porque usava: aposentara-se há muito tempo e, desde então, nunca mais teve de seguir horários. Mas o mantinha sempre exato e se suas pilhas acabassem, imediatamente corria trocá-las e acertava novamente os ponteiros.

Um dia estivemos juntos em um cemitério. Um parente tinha morrido e, após o enterro, enquanto as pessoas ainda trocavam cumprimentos incertos ele quis tomar água. Acompanhei-o. Disse-me em tom solene, que não lhe era comum:

'Logo... Logo eu vou precisar de um terreno num lugar desses.'
'Não vô, não vai. O senhor ainda vai durar muitos anos. Vai me ver formado.'

'Acho que não. A tua vida inteira eu estive prestes a morrer.'

'E no entanto esteve sempre aí, a minha vida inteira.'

Nosso breve diálogo foi interrompido pela aproximação de meus pais. Não sei porque, mas essa conversa – e seu tom grave – pareceu para mim como um segredo, um pacto entre nós dois. Ele devia concordar, pois ficou também em silêncio.

Não tocamos mais no assunto. Mas o assunto me tocou, e sempre voltou a minha mente, todas as vezes que ele foi para o hospital depois. E foram muitas. Como ele dissera, ele sempre esteve prestes a morrer desde que eu o conheço. Mas sempre foi mais forte que suas doenças, e sempre escapou para contar a história.

Até minha avó, esposa dele, que todos acreditavam que seria a viúva, se foi, deixando-o desconsolado. Poucas coisas na minha vida doeram tanto quanto ver esse homem – tão diferente de mim, mas ao mesmo tempo tão amado por mim – sofrendo, chorando.

Se eu fosse tão racional quanto gosto de parecer ser, eu não entenderia a ligação que eu sentia – sinto – ter com ele. Quarenta e um anos nos separam no calendário. Quando eu nasci ele já não era mais o homem brilhante que fora anos antes: as sequelas de um derrame lhe faziam parecer menos do que era realmente. Mas ainda assim, eu me lembro da minha infância: os passeios que me levou, as coisas que me ensinou, os primeiros quadrinhos da minha vida (sua enorme coleção amarelada de 'Tex'). A paciência infinita que tinha comigo, mesmo quando eu era criança e usava sua enorme barriga como escorregador.

Conversávamos pouco nos últimos anos. Ao menos, falávamos pouco. Mas simplesmente estar com ele na mesma sala me fazia sentir menos solitário.

E há algumas horas apenas ele foi sepultado. Morreu em casa: fico feliz, ele odiaria morrer em um hospital. inclusive, fugiu de um certa vez. Estava bonito, com um rosto tranquilo, quase feliz. A rosto, emagrecido pelos sofrimentos recentes, retomou seu volume habitual.

O anel, a corrente e o relógio foram enterrados com ele. Eu me preocupo com como vai trocar as pilhas, quando acabarem.