segunda-feira, 12 de maio de 2008

Cassandra (2)

1: http://fluxodeinconsciencia.blogspot.com/2008/04/cassandra.html

É curiosa - e igualmente dolorosa - a impossibilidade da memória: não consigo lembrar de um rosto quando não o estou vendo, isto é: sou capaz de reconhecer uma face mas nunca lembro exatamente como ela é. Mais difícil do que comer uma madeleine.
O dia arrastou-se lento, eu trabalhava distraído. Mnemósine não me sorria enquanto eu tentava fazer um retrato mental de Cassandra. Ela assombrou-me durante todo o dia, o escritório era Elsinore: a vingança aqui chamava-se compreensão.
Finalmente chegou a hora do enterro. Enlutei-me, por puro respeito a família: não acho que os vivos devam mais respeito aos vivos que aos mortos, e nunca vi ninguém usar uma cor especial para um nascimento. Via de regra, os vivos é que tem o que os mortos desejam.
A atmosfera era típica: lágrimas contidas, lágrimas copiosas, lágrimas discretas - como todos os mortos, Cassandra recebeu todos os tipos de lágrimas. Enquanto sua mãe desmanchava-se em pranto, alguns eram quase indiferentes, mais curiosos do que tristes ou respeitosos.
Foi nada mais que uma Dodendanz clássica: o padre e suas litanias: os vivos e suas respostas. A morta enterrada. Acho que seria melhor se ela tivesse sido cremada, eu ao menos quero ser: Ignus mutat res. Deus, no entanto, prefere bolotas de carniça.
Tinha uma irmã. Ou tem, não sei - foi ela que deixou de existir, e não a irmã: noto agora que a gramática está despreparada para lidar com a morte. Quase tão bonita quanto. Porém de olhos menos profundos. Danse macabre: ainda que eu ande à sombra do vale da morte, não temerei mal algum. Sementes de maça foram um suicídio adequado, Dante diria que ela virará uma árvore no inferno. Apolo também transformava mulheres em plantas, mas a Cassandra ele deu o descrédito.
Talvez seja isso. Uma profecia, a qual ninguém dará ouvidos. Como ratos abandonando um navio. Assim tivemos Tróia. Dou as condolências para a família, mas queria que fosse para Cassandra. Acho que ela recusaria.
Quando eu deixo o cemitério, já lunou. As estrelas têm seu brilho ofuscado pela cidade, tornam-se um nada. Isso é bom em dias como esse, nos quais elas seriam tremendamente opressoras.

Nenhum comentário: